"INTERMEZZO" POLÍTICO DE BALZAC
" Antes, porém, dessa viagens ao estrangeiro, cuja série começará em 1833, vemos Balzac cruzar a França em todos os sentidos. Ao aceitar o convite de amigos ou amigas, tem sempre em vista a possibilidade de achar para a ação de um ou outro romance em preparo, algum cenário inexplorado: Issoudun, Nemours, Angoulême, Saumur, etc.... Poder-se-ia fazer um mapa quase pleno da França com as localidades que o gênio de Balzac introduziu na literatura. "Uma das razões que explicam a rápida voga do senhor de Balzac por toda a França" - observa a esse respeito Saint-Beuve, o grande adversário do romancista que, para explicar-lhe o bom êxito, admitia todas as razões menos o gênio - "é a habilidade na escolha sucessiva dos lugares onde coloca o cenário de suas narrativas... Esta lisonja dirigida a cada cidade em que o autor situa as suas personagens significa para ele a conquista da mesma; a esperança que tem as cidades ainda obscuras de serem em breve descritas em algum romance novo, predispõe para ele todos os corações literários do lugar. - Este pelo menos - dizem - não é orgulhoso; não é exclusivamente parisiense, e de sua Chaussée d'Antin não despreza as nossas ruas e as nossas granjas."
Por volta de 1831, as viagens de Balzac, no entanto, um outro fim além do literário. Confiando na popularidade do seu nome, quer, precisamente, sair do terreno da literatura. Desejoso de não apenas observar e descrever, mas plasmar a evolução da sociedade, candidata-se às eleições legislativas em Cambrai e em Angoulême . Para ser eleito conta especialmente com o apoio da alta sociedade, pois esse plebeu está resolvido a fazer-se campeão da aristocracia. Todos aqueles que gostam de ver os grandes escritores na primeira fila dos que combatem pela ascensão das classes laboriosas e para a encarnação, nas instituições do Estado, do espírito de liberdade, hão de notar, com tristeza, que desde o começo de sua carreira Balzac se filiou à outra frente, adotando um programa político nitidamente conservador e mesmo reacionário. A este respeito, o Prefácio da Comédia Humana, escrito em 1842, contém uma exposição bastante categórica; mas já doze anos antes, numa carta à senhora Zulma Carraud, Balzac faz uma profissão de fé política no mesmo sentido. Achamos interessante citar-lhe os itens principais, pois esclarecem muitos trechos da Comédia Humana em que as personagens ou o próprio autor comentam assuntos políticos: "A França deve ser uma monarquia constitucional, ter uma família real hereditária, uma Câmara dos Pares extremamente poderosa que represente a propriedade com todas as garantias possíveis de hereditariedade e privilégios, cuja natureza deve ser discutida; depois, uma segunda Assembléia, eletiva, que represente os interesses da massa intermediária que separa as altas posições sociais do que se chama povo. A massa das leis e seu espírito devem tender a procurar esclarecer o mais possível o povo, as pessoas que não tem nada, os operários, os proletários, etc., a fim de fazer chegar o maior número possível de homens ao estado de bem-estar que distingue a massa intermediário; contudo, o povo deve ser deixado sob o mais poderoso dos jugos; deve ter toda a oportunidade para que seus indivíduos possam encontrar luzes, auxílio e proteção, e para que nenhuma ideia, forma ou transação o torne turbulento. A maior liberdade possível à classe abstrata; pois esta possui algo para conservar e pode perder tudo; esta nuca será licenciosa. Ao governo, a maior força possível. Assim o governo, os ricos e os burgueses tem interesse em tornar feliz a classe ínfima, e engrandecer a classe média, na qual reside a verdadeira força dos Estados. Se as pessoas ricas, as fortunas hereditárias da Câmara Alta, corrompidas por seu modo de viver, praticam abusos, estes são inseparáveis da existência de toda a sociedade; é preciso aceitá-los com as vantagens que oferecem".
Para Balzac, este sistema, se não é perfeito, parece o menos o menos defeituoso de todos, pois reúne "as condições boas e filantrópicas de vários outros; eis que afirma em 1830: "Nuca abandonarei este sistema" - r realmente conservou-se fiel a ele até o fim da vida.
Quando, pouco depois de ter escrito esta carta, Balzac se lembrou de tomar parte ativa na política, candidatando-se às eleições, procurou o partido cujas ideias mais se assemelhassem às suas, e achou-o no partido legitimista. No seio deste havia uma cisão. Quando da instalação da Monarquia de Julho, em seguida à revolução de 1830, a maior parte dos deputados e dos pares monarquistas recusaram-se a prestar juramento de fidelidade a um regime que consideravam usurpador; uma minoria, porém, resignou-se ao juramento para poder combater, como oposição ativa, o novo governo. O duque de Fitz-James era chefe dessa facção, cujas ideias eram expostas no Rénovanteur, órgão redigido por Laurentine, a cujo convite de colaboração Balzac respondeu com entusiasmo.
É forçoso reconhecer que as ideias expostas na carta acima são as da "direita"; no entanto, esta profissão de fé não coincide de modo preciso com a conclusão geral que cada leitor desprevenido tira naturalmente da Comédia Humana. Balzac faz-se paladino do sistema político e social vigente em seu tempo e da predominância da Igreja católica, mas seus livros constituem, com pouca exceções, outros tantos golpes demolidores assestados aos alicerces do edifício social e religioso de seu tempo. Apesar de várias tentativas da crítica monarquista e conservadora francesa (Barbey d'Aurvilly, Bouget, etc.) para demonstrar a coerência entre o pensamento político e a obra literária de romancista, parece que Victor Hugo teve mais razão ao afirmar, na poderosa oração pronunciada sobre o túmulo de Balzac, que este, quisesse ou não, pertencia "a forte raça dos escritores revolucionários".
Nas páginas da Comédia Humana as opiniões conservadoras de Balzac ocorrem frequentemente, ora atribuídas a personagens das altas classes sociais, ora nas frequentes interrupções da ação, como palavras do próprio autor. Apesar disso a obra literária de Balzac é essencialmente imparcial, pois suas convicções políticas nunca levamo escritor a alterar seja o que for no que ele considera a observação e expressão da realidade. Cupre citar a este respeito uma das justificações com que o político Balzac procura afastar o ressentimento de leitores conservadores contra o escritor Balzac por ter este apresentado um fidalgo degenerado num dos capítulos de Modesta Mignon. "... quando as grandes coisas humanas se vão, deixam migalhas... e a nobreza francesa mostra-nos, neste século, demasiados restos. Não há dúvida de que, nesta longa história de costumes na Comédia Humana, nem o clero nem a nobreza tem de se queixar. Essas duas grandes e magníficas necessidades sociais acham-se nela bem representadas; mas não ser imparcial, não mostrar aqui a degenerescência da raça, não equivaleria a renunciar ao belo título de historiador...? Este belo título nuca lhe foi contestado pelos intelectuais da esquerda. O próprio Marx lia-o com entusiasmo, e Engels prestou-lhe homenagem neste significativo trecho de carta: "Balzac... nos dá, em sua Comédia Humana, a história mais maravilhosamente realista da societé francesa... descrevendo sob forma de crônica de costumes, quase de ano em ano, de 1816 a 1848, a pressão cada vez maior que a burguesia ascendente exercia sobre a nobreza que se reconstituíra depois de 1815 e que, tant bien que mal, na medida do possível, levantava outra vez a bandeira da Vieille politesse française. Descreve como os últimos restos dessa sociedade, para ele exemplar, sucumbiram aos poucos em face da intrusão do parvenu vulgar da finança, ou foram por este corrompidos; como a grande dama cujas infidelidades conjugais não eram senão um meio perfeito de se adaptar à maneira por que se dispunha dela no casamento, cedeu lugar à burguesa que procurou um marido para ter dinheiro ou toilettes, em volta deste quadro central agrupa toda a história da sociedade francesa, onde eu aprendi mais, mesmo no que concerne aos pormenores econômicos (por exemplo a redistribuição da propriedade real e pessoal depois da Revolução) do que em todos os livros dos historiadores, economistas e estatísticos profissionais da época, todos juntos. Sem dúvida, Balzac era legitimista na política; sua grande obra é uma elegia perpétua que deplora a irremediável decomposição da alta sociedade; suas simpatias vão para a classe condenada a morrer. Mas, apesar de tudo isto, sua sátira nunca é uma incisiva, sua ironia mais amarga, do que quando faz agir esses aristocratas, esses mesmos homens e mulheres pelos quais experimentava tão profunda simpatia. E... os únicos homens de quem fala com admiração não dissimulada são seus adversários políticos mais encarniçados, os heróis republicanos da rua do Cloítre Saint-Merri (cenário da insurreição popular de 5 e 6 de junho de 1832), os homens que nesta época representavam realmente as massas populares."
Pode-se lamentar, pois, que Balzac tenha professado um credo reacionário; mas isto não lhe altera nem a imparcialidade nem o valor da obra, e há nisto mais uma prova de seu gênio. Ainda hoje, Paul Louis, historiador de socialismo francês, ao procurar reconstruir os tipos sociais do período do capitalismo nascente, recorre ao monumental inventário feito pelo monarquista e católico Balzac.
Retomando a vida de Balzac no ponto onde a deixamos, observaremos que o escritor, para bem da literatura, não foi eleito deputado nem em 1831, nem em 1832, nem mais tarde, a despeito do apoio que lhe foi prometido pelo duque de Fitz-James. Dir-se-ia que o partido monarquista não se empenhava muito em ajudar um aliado tão perigoso. Por outro lado, Balzac, premiado por seus compromissos literários e acossado pelos credores, não dispunha do tempo necessário a uma campanha eleitoral. mantendo embora as mesmas ideias, afastou-se progressivamente do partido, cujos jornais em seguida o agrediram mais de uma vez por suas teorias, insuficientemente ortodoxas, e por sua pretensa imortalidade. "
P.R.